#03: DESENCANTAMENTO DIGITAL
O Papa, a AppleTV e o jogo do tigrinho nos convidam a pensar sobre os efeitos da tecnologia.
Trop Drops é um conteúdo mensal para nossos assinantes acompanharem sinais de comportamentos emergentes a partir do Radar de Tropicalização - metodologia exclusiva de Trop para mapear e localizar tendências, que você pode conhecer em detalhes aqui :)
Na edição de hoje:
💡 O Papa, a AppleTV e o jogo do tigrinho nos convidam a pensar sobre os efeitos da tecnologia.
A CES2024 (Consumer Electronics Show), uma das maiores feiras de eletrônicos do mundo que acontece anualmente em Las Vegas, nem tinha terminado e os posts entusiasmados com as novas traquitanas tecnológicas tomaram conta das redes todas. E de fato, é difícil não se animar com possibilidades como a inteligência artificial de bolso R1 [que por sinal, vendeu US$10M em vendas em uma semana], as TVs invisíveis, e evoluções incríveis tipo a luva de estabilização para quem sofre de tremores na mãos da GyroGear.
E essa empolgação toda com a tecnologia e o digital não é novidade. Afinal, a gente passou os últimos muitos anos consumindo e construindo a narrativa de que progresso e tecnologia estavam muito ligados. Não à toa, quando a gente fala sobre lugares inovadores é muito mais provável citar Vale do Silício do que a Favela da Maré. E isso faz muito sentido se pensarmos que os rankings das marcas mais valiosas nos últimos anos têm sido liderados por empresas de tecnologia, que ganham muito com essa narrativa.
Mas assim como toda inovação, após o deslumbramento, vem o uso e a reflexão. No período mais digital e tecnológico da história, e que usufruímos de inúmeros benefícios e possibilidades nunca vividos, passamos a nos deparar também com dilemas e problemas novos oriundos desse cenário. Com isso, a narrativa em torno dessa visão positiva passa a ter outras nuances. E alguns fatos ajudam a ilustrar essa vira de chave:
Fato 1 - O Papa alertando para a necessidade de cautela e conscientização sobre algoritmos e AI, em sua mensagem o Dia Mundial da Paz que foi celebrado em 1º de janeiro.
“como todas as revoluções, também esta baseada na inteligência artificial coloca novos desafios para que as máquinas não contribuam para espalhar um sistema de desinformação em larga escala e não aumentem a solidão daqueles que já estão sós, privando-nos do calor que só a comunicação entre pessoas pode dar”
Fato 2 - A série Morning Show - produzida pela Apple - trazendo uma temporada cujo grande problema foi um ciberataque
Fato 3 - No Brasil, uma investigação em torno de jogos de azar e influenciadores com milhares de seguidores ganha destaque na mídia e traz à tona o debate sobre credibilidade e golpes no digital. De mídia à memes:
O que isso tudo nos diz?
Estamos diante de um novo momento da relação com a tecnologia e a digitalização, onde passamos a problematizar as questões acerca de um uso - até então - muito passivo de muitas ferramentas, tecnologias e sistemas. A empolgação com a inovação passará cada vez mais a conviver também com o ceticismo, o medo e a cautela. Esse movimento é o que chamamos de Desencantamento Digital.
Essa tendência foi mapeada a partir do Radar de Tropicalização, na qual analisamos comportamentos emergentes a partir de 3 etapas e 21 variáveis. A partir desses indicadores é possível trazer mais granularidade para os sinais de futuro e, com isso chegar em insights mais acionáveis.
Abaixo, vamos olhar etapa por etapa:
IMAGINAÇÃO: 4/10 nível emergente
Imaginação é a etapa onde entendemos a força da tendência no imaginário coletivo. Para isso, analisamos e medimos 7 variáveis que ajudam a criar desejo e relevância para um tema.
De documentários em grandes plataformas sobre a relação de saúde mental e redes sociais à denúncias do impacto de fake news em grandes eleições, o imaginário coletivo passa a ser impactado pelas reflexões e consequencias do mundo tecnológico e digital. Portanto, ao mesmo tempo que as evoluções chegam, crescem as críticas sobre elas. E nesse sentido, as variáveis a.3 Mídia e Imprensa e a.4 Personalidades Universais têm um papel importante na propagação desse comportamento.
Um exemplo é a cantora Selena Gomez, eleita várias vezes e por vários veículos como uma das mais influentes personalidades no mundo, que constantemente faz pausas digitais como forma de preservar sua saúde mental - e repercute o assunto mundialmente. E essas pausas têm sido cada vez mais frequente entre celebridades, como foi o caso de John Legend, Chris Evans, Billie Eilish, Gigi Hadid, Tom Holland e tantos outros.
Nas próprias redes sociais, o assunto de detox de redes sociais é bem expressivo, com milhares de conteúdos sobre o tema - com exemplos, passo-a-passo e benefícios.
Isso tudo obviamente vem repercutindo e impactando no comportamento. Há alguns anos, vem sendo observado que jovens estão diminuindo o uso de redes sociais - exceto o TikTok - e buscando novos apps e plataformas, quase que iniciando uma nova era social na internet como discutido no relatório The Future of Social Media, publicado pela Dazed em 2023.
Esse comportamento passa a ser observado pela variável a.7 Plataformas e Marcas Globais que, cada vez mais, passam a oferecer serviços e produtos que funcionam como paliativos para soluções que elas mesmas ofereceram. Um exemplo é o Instagram com seus lembretes de pausa e a Nokia, que recentemente lançou uma linha de “dumb phones” - que são celulares simples, contrastando com os smartphones.
IDENTIFICAÇÃO: 4/10 nível emergente
Identificação é a etapa onde analisamos e medimos o fit da tendência com o contexto local - que nessa análise é considerando Brasil. Para isso, analisamos 7 variáveis que medem o entendimento e experimentação. Aqui é onde começamos a compreender melhor a TROPICALIZAÇÃO, ou seja, a modulação da tendência conforme o contexto. Se em imaginação observamos códigos globais, aqui aterrissamos para o cenário local.
Quando fazemos um zoom in e passamos a filtrar os sinais de comportamento pensando em mercado local, vemos que o índice está muito semelhante ao score global, indicando um comportamento que extrapola fronteiras e retrata uma face do nosso espírito do tempo.
No Brasil, a variável b.1 Tradutores Locais faz um papel importante na disseminação do tema junto por aqui, especialmente no sentido de oferecer letramento para o uso de tecnologias e plataformas internacionais que, muitas vezes, não são reguladas localmente.
Um exemplo desses alertas foi o post do Yuri Zero, CEO da Melted Videos falando sobre a necessidade de se pensar em ações estruturais para frear a desinformação a partir de ferramentas de AI.
O interessante aqui é observar que não estamos falando de um órgão de governo, de uma ONG ou de uma comunidade técnica, que poderia indicar um interesse corporativo, uma aversão selecionada ou uma problematização nichada. A pauta sobre a reflexão do digital está sendo trazida justamente por um jovem que é referência no digital e que a partir do seu conteúdo impacta milhões de pessoas diariamente com memes que, mais que fazer rir, ajudam a entender um pouco o imaginário e o estado de humor dos jovens brasileiros.
Yuri não está sozinho e faz parte de um número cada vez maior de criadores de conteúdo que vem corroborando para uma consciencia crítica sobre a tencologia e o meio digital. Por aqui, curtimos muito o trabalho do Bruno Natal, do Resumido. Em seu podcast semanal, ele traz assuntos em alta, explicando como a tecnologia impacta todos aspectos das nossas vidas.
APROPRIAÇÃO: 3/10 embrionário
A etapa de apropriação mede variáveis que ajudam a analisar a familiaridade e proximidade da tendência junto ao contexto local, fatores essenciais para possibilitar a reinterpretação com códigos locais.
Quando a gente analisa a trend Desencantamento Digital pelo viés da apropriação, temos um score 1 ponto atrás em relação às demais etapas. Isso significa que localmente a tendência já permeia, é observada e comentada, mas agora começa a dar sinais mais evidentes de mudanças práticas de comportamento.
E uma variável que ajuda a medir isso é a c.5 Regulamentações, na qual observamos como os órgãos oficiais estão agindo em relação à determinado assunto. Por aqui, diversos projetos de leis ligados à regulação de redes e plataformas vem circulando à algum tempo e, recenetemente, duas aprovações marcam esse momento:
A primeira delas foi a notícia de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, no dia 15/01, a lei que criminaliza bullying e cyberbullying. Trazendo pra nossa seara, uma lei como essa reforça a ideia de que a internet e o digital podem sim ser danosos, a ponto de termos uma lei sobre crimes oriundos lá. Portanto, já não é possível ignorar a ideia de que a internet é apenas positiva.
E essa busca por novos marcadores aparece em outra plataforma global: o Pinterest. No seu relatório de previsões 2024 foi apontada a crescente de pais querendo compartilhar mais as conquistas e momentos dos filhos. Segundo eles: “famílias tomadas por uma aceleração visceral, vão tentar novos motivos para marcar o tempo, com rituais diversos”:
Nesse mesmo tópico, outro sinal importante foi a abertura de uma consulta pública pela administração municipal do Rio de Janeiro para avaliar a proibição do uso de celulares e dispositivos digitais no intervalo das escolas. O decreto, que já proíbe o uso de celulares dentro das salas de aula, visa combater o que as autoridades têm chamado de “ansiedade” e “desconcentração” generalizada. Inclusive, a equipe da Contente fez um post trazendo reflexões sobre esse tema.
Fora dos palanques, a tendência também se manifesta de forma prática e uma variável interessante para acompanhar essa evolução é a c.4 Conversa Popular.
Muita coisa tem sido discutida pelos brasileiros, especialmente a partir de assuntos pautados pela mídia. Um exemplo foi a campanha levantada por internautas pedindo o fechamento da página Choquei, após a morte de uma jovem em função de notícias falsas divulgadas. Não se trata mais de um documentário com teorias da conspiração sobre o vale do silício, e sim sobre conversas de usuários sobre as consequencias trágicas que o uso desenfreado do digital pode causar.
TÁ, MAS E AÍ? O QUE A GENTE FAZ COM ISSO?
Larga tudo e vai para as montanhas. Um caminho obvio da busca de desconexão e privacidade.
O pulo do gato é justamente compreender essas movimentações e não silenciar ou ignorar comportamentos emergentes que estão cada vez mais presentes na vida do consumidor.
Existe um caminho óbvio nessa tendência que são os movimentos de busca pela desconexão e letramento de privacidade - e que marcas já estão respondendo, como é o caso da Nokia citada acima e das várias campanhas das techs sobre privacidade, tipo essa da Apple:
Mas para além disso, a reflexão principal é entender que a relação do consumidor com a tecnologia está amadurecendo e, com isso, novas exigências e negociações serão feitas. E assim, será necessário que as empresas estejam atentas àquilo que de fato é importante e relevante para o seu consumidor.
Estamos sim no momento mais conectado da história, mas isso não significa que a reposta pra tudo seja mais tela e mais conexão. E um exemplo disso é o famoso - e polêmico - menu QR code, que em teoria facilita a vida, mas na prática irrita multidões.
Por que a trend Desencantamento Digital é estratégica para as marcas no Brasil?
A tendência é estratégica pois se trata de um comportamento crescente, com sinais claros de evolução. Portanto, marcas que conseguirem compreender essa tensão do consumidor e responder - seja com produto, serviço, comunicação - ganham relevância e credibilidade.
Vale lembrar que o Brasil é um país que, por natureza, adere à tecnologia e inovação com muita rapidez. Uma pesquisa da consultoria EY com 21 mil pessoas em 27 países, mostra esse comportamento curioso e aberto à inovações:
82% dos brasileiros assinam serviços de streaming de vídeo vs 63% global
75% ouviram streams de áudio nos últimos meses vs 62% global
84% gerenciaram dinheiro por meio do site ou aplicativo do banco vs 77 % global
58% socializaram com amigos e familiares em plataformas de vídeo vs 53% global
Mas esse entusiasmo todo com as novidades, também nos deixa vulneráveis. Vamos testando sem saber direito o que vai dar. E com isso também figuramos no topo de outro ranking: golpes. Somos o 2º país com mais crimes digitais no mundo, o que vai impulsionando esse comportamento de desencantamento [e também abrindo espaço para novos produtos]
Tudo isso pra dizer que o desencantamento digital por aqui é legítimo e muito impulsionado pelo “aprendi na marra”. Portanto, esse consumidor vai buscar cada vez mais marcas e parceiros que os ajudem nesse dilema de testar, mas sem se prejudicar.
Como colocar a tendência na prática?
A tendência Desencantamento Digital é um convite para as marcas compreenderem as tensões e fricções na relação das pessoas com a tecnologia e o universo digital e usarem seus recursos para para um contribuírem para um cenário mais positivo para a sociedade.
COMUNICAÇÃO:
Para além de comunicar assets de produtos e serviços aderentes à tendência, marcas têm um potencial de fazer a diferença ao usar sua força social para contribuir com o maior letramento do público, de forma transparente e acessível. Bancos têm sido muito efetivos nesse sentido, com campanhas que ajudam a conscientizar sobre golpes.
PRODUTO:
Um caminho óbvio para os desencantados são os produtos que ajudam a combater as tensões que potencializam o desencantamento. Portanto: tudo aquilo que propõem desconexão, privacidade, segurança e transparência digital será cada vez mais relevante para o consumidor. [inclusive, a busca por hoteis e hospedagens só aumenta. E basta uma olhadinha no AirbnB pra ver essa evolução…]
Mas para além disso, a grande reflexão em produto está em questionar o uso desenfreado de inovação. Em um mundo que está descobrindo os riscos da Inteligência Artificial, será que precisamos de um creme pro rosto cujo atributo seja “criado a partir de inteligência artificial”? [e atenção, ninguém aqui tem nada contra inteligência artificial, até temos amigos que usam 👀. ]
MODELO DE NEGÓCIO:
Novamente, não se trata de abrir mão de tecnologia e internet - mas sim compreender que muito do Desencantamento Digital é oriundo de negócios que foram coniventes e respnsáveis por prejudicar seus usuários. Quando empresas são relapsas com a segurança de dados, e acontece um grande vazamento, ela contribuiu para a crescente desconfiança do consumidor.
💡 85% acreditam que grandes empresas como Google, Facebook, TikTok,
Amazon têm muito mais informação sobre as pessoas do que dizem, e que precisa haver um controle maior sobre elas.
Fonte: Trop Trends 2023 - 1650 casos (Brasil, México e Colômbia)
Pensar negócios para o Desencantamento Digital é sobre pensar uma jornada que combata essas tensões e proporcione um melhor uso das ferramentas e tecnologias, garantindo a segurança, privacidade e transparência.
Pra fechar, uma pergunta que a gente ouve sempre que fala de alguma tendência é: QUANDO ISSO VAI ACONTECER?
Vocês já sabem mas continuaremos reforçando por aqui: o futuro não chega de repente. Ele já está acontecendo e cada película de privacidade pra celular vendida vai alimentando esse comportamento, aos pouquinhos.
Como sempre falamos, acreditamos que o futuro não é uma linha de chegada a ser cruzada, como algo distante que de repente nos encontra. O futuro é o reflexo daquilo que vivemos hoje. Portanto, os sinais emergentes são evidências atuais que indicam para a consolidação de comportamentos do amanhã. Algumas tendências, mais embrionárias, levam mais tempo para se consolidar. Mas uma vez monitorada pelo Radar, é prova de que o comportamento já está no subterfúgio social, permeando em diferentes esferas , por isso, oferece uma boa oportunidade para marcas.
Se a tecnologia é exponencial, nossa relação com ela também será. E cabe a nós - à frente de marcas e empresas - contribuir para que reflexões sejam feitas e propostas mais saudáveis sejam construídas.
Por aqui, seguimos no compromisso de ajudar a reduzir o FOMO com a news mensal 🙂
Até breve!
Conteúdo ótimo! Mas vale a revisão, porque deixaram passar alguns errinhos (coisas bobas, mas que podem impactar na credibilidade para quem vem de fora) :)
incríveis como sempre 💛🌻