#17 Trop Drops | Realidade Ilusória
O que a série Ruptura, uma apresentadora debochada de Maiô e a normalização da dissociação estão dizendo sobre nós?
Trop Drops é um conteúdo mensal para nossos assinantes acompanharem sinais de comportamentos emergentes a partir do Radar de Tropicalização - metodologia exclusiva de Trop para mapear e localizar tendências, que você pode conhecer em detalhes aqui :)
Na edição de hoje:
Já de largada, vamos começar essa edição te apresentando uma lei — não daquelas que você deve seguir, mas daquelas que nos ajudam a entender o movimento que deu origem à tendência que decodificamos esse mês.
Sabe aquela sensação de que um pouco de pressão faz a gente render mais? A ciência tem um nome para isso: a Lei de Yerkes-Dodson. Segundo essa lei existe um ponto ideal de estresse que otimiza nossa performance — nem pouco, nem demais. Mas o que acontece quando nos esforçamos para eliminar todo o estresse da nossa vida?

Em um mundo de policrises, passamos a maior parte do tempo expostos a demandas constantes e níveis elevados de estresse. Qual tem sido o feito colateral disso? Nas poucas horas que sobram entre as obrigações da vida adulta, buscamos um respiro e, muitas vezes, ele vem em forma de baixo desempenho disfarçado de escapismo.
Tentamos preencher o tédio com qualquer coisa que nos desligue da realidade, mesmo que por alguns minutos.
O conforto excessivo reduz nossa capacidade de lidar com desafios complexos. Em vez de promover resiliência, ele nos leva a evitar qualquer forma de desconforto. Nesse cenário, ganham espaço narrativas que oferecem alívio imediato: versões simplificadas da realidade, emocionalmente mais leves e menos exigentes. Passamos a habitar realidades paralelas, muitas vezes centradas no “eu” e moldadas por filtros individuais. Essa busca por segurança emocional limita o pensamento crítico e inibe processos coletivos de amadurecimento. É nesse deslocamento — entre a vontade de escapar e a dificuldade de sustentar a realidade como ela é — que começam a emergir sinais culturais relevantes.
Dessa necessidade de criar espaço para doses diárias de alucinações para dar conta de encarar o dia a dia é que surge a nossa tendência desse mês:
Realidade Ilusória é um movimento cultural que nos empurra para uma espiral de delírios controlados e mecanismos de alívio que reduzem o sofrimento psíquico, mas também nos afastam das experiências necessárias para formar maturidade emocional. Trata-se da construção de uma cultura da autoilusão, onde a fantasia funciona como ferramenta de crença individual e adaptação subjetiva à realidade.
Os sinais do nosso radar são claros e revelam que essa busca por escape se intensificou após a pandemia da Covid-19. Ao analisarmos os sinais do nosso contexto atual, o "tédio crônico" é um dos disruptores e afeta cerca de 30% dos jovens adultos, conforme estudo publicado pelo "Journal of Behavioral Science". Este estado mental, combinado com a constante busca por estímulos dopaminérgicos através das redes sociais, cria um ciclo vicioso de escapismo da realidade. Em média, adolescentes checam seus smartphones 100 vezes por dia — aproximadamente uma vez a cada 10 minutos.
Com a crença de que estamos vivendo em um mundo cada vez mais acelerado e demandante, a busca por realidades alternativas como mecanismo de defesa só tende a aumentar. O mercado de realidade virtual, por exemplo, deve atingir US$ 92 bilhões até 2027, segundo relatório da Grand View Research, refletindo nossa necessidade crescente de encontrar novos espaços de fuga.
Os dados não negam, nosso radar também não:
a Realidade Ilusória já é uma tendência pulverizada e dominante tanto na aldeia global quanto dentro do nosso quintal. Vamos começar dissecando os sinais da etapa de imaginação.
É impossível discutir Realidade Ilusória sem mencionar a série mais comentada e analisada em vídeos no YouTube e TikTok: uma obra com tantos pilares narrativos que trazem esse desejo cultural de fugir de si e da própria dor psíquica, mesmo que isso custe a própria identidade.
Pela variável a.1 "Indústria Cultural e Entretenimento Global", nosso primeiro exemplo é Severance (Ruptura, da Apple TV), que transformou em narrativa um desejo oculto de muitos de nós: o mundo perfeito seria aquele em que pudéssemos separar o “eu pessoal” do “eu profissional” em duas realidades distintas — tão ilusórias quanto o próprio desejo. Em uma, você não trabalha (mas trabalha); na outra, você não vive (mas existe). É o ritual de fuga perfeito, criado para aplacar o sofrimento de simplesmente existir. Ou seja, a materialização de uma cultura que já não suporta mais estar presente o tempo todo.
E quando o mundo se torna insuportável, a busca não é só cognitiva: ela entra porta adentro à procura de ambientes visuais onde a dor não entre. A estética de "Ruptura", com visual gelado, simétrico, asséptico, totalmente desprovido de emoções, dá conforto a quem vive um excesso de estímulos. Tudo se torna previsível, e até os absurdos (como as festinhas com cabeças de melancia ou waffles) criam uma bolha, uma estética onde as emoções são contidas, onde não se sofre demais, pois nada parece real.

Filtro da Realidade:
A moda sempre foi usada para ajudar seus usuários e seguidores a criar uma personalidade, mas como já vimos, a Realidade Ilusória está nos levando a buscar Universos Paralelos. Se ainda não conseguimos imaginar um, as marcas podem fazer isso por nós. É o caso da marca de óculos sul-coreana Gentle Monster, que não se prende nem um pouco ao que deve ser "ocidentalmente fashion" e se jogou em criar um conceito que trabalha o estranho elegante através de um surrealismo futurístico. Seus óculos são grandes, distorcidos ou com ângulos alienígenas; na collab com a Boneca Bratz traz de volta o mundo lúdico infantil, e na collab com o Google e Warby Parker une tecnologia, moda e realidade aumentada.
Entendendo que a realidade é um lugar saturado, a marca constrói seus produtos e sua imagem como uma fuga performática altamente sensorial — óculos para a Gentle Monster são como máscaras para um novo "eu".

Esse sinal entra pela variável a7. Marcas de Plataformas Globais, um exemplo de marca que entende a estética como linguagem emocional, já que o seu visual não precisa fazer sentido racional algum. Eles fazem sentido afetivo, já que apelam para o público que está esgotado de uma realidade que é "real demais". Aliás, as lojas da Gentle Monster são outra viagem à parte: uma viagem performática, com instalações artísticas gigantes e até museus de um planeta onde o tempo não é linear — sempre apelando para o estímulo, a fuga e o reencantamento, tudo junto. Gentle Monster não vende óculos. Ela vende portais, lentes para quem cansou da realidade e quer performar uma nova narrativa, nem que seja só por 10 minutos na frente do espelho.
E quando a realidade é ilusória e editável?
Este primeiro sinal da Etapa de Identificação passou pelo nosso Radar pela variável b1. Tradutores Locais — ou seja: como estamos traduzindo a Realidade Ilusória em nosso território antes de ela alcançar o mainstream.
Duas irmãs de Curitiba, Thali e Gabi, formam uma dupla super criativa de "creators" conhecidas como "Two Lost Kids". Com conteúdo super autoral que mistura moda, arte e cultura em uma estética dopaminérgica retro-futurista, as irmãs entregam um trabalho com marcas globais hype de uma maneira performática e simbólica, focando-se em criar narrativas visuais que desafiam a linearidade do tempo e a rigidez da identidade


O universo criado pelas irmãs do Two Lost Kids transcende suas redes sociais e estilo visual. Elas construíram um universo que se transformou em uma cápsula de Realidade Ilusória, meticulosamente elaborada para seduzir o olhar e embaralhar o tédio e as certezas do cotidiano. Thali e Gabi converteram sua vida em uma performance cinematográfica, não apenas encantando seu público, mas também criando um espaço de fuga onde a lógica do real se dissolve.
Além de serem super talentosas em tudo que fazem, Two Lost Kids acertaram na escolha de uma narrativa que oferece uma nova camada de mundo onde o espectador pode escapar, mesmo que por alguns segundos, das regras previsíveis e da realidade ordinária.
De um escapismo criativo para um comportamental:
Pela variável b3. Comunidades, observamos um fenômeno que evolui de uma estética digital para um comportamento coletivo profundo, especialmente entre adolescentes e jovens adultos no Brasil. Mais do que uma tendência visual, o "Shifting" tornou-se uma prática de escapismo comportamental, na qual os indivíduos buscam refúgio em realidades alternativas criadas por eles mesmos.

Imagine "acordar em Hogwarts" ou se ver correndo em uma floresta escura de "O Crepúsculo", engravidar, morrer, casar e até ressuscitar: tudo é possível através do shifting, uma prática em que a pessoa transfere sua consciência para uma realidade desejada (DR - Desired Reality). Nessa realidade, tudo é meticulosamente roteirizado, incluindo detalhes sobre o ambiente, relações interpessoais e características pessoais. É como uma forma de auto-hipnose, uma auto-sugestão daquilo que o praticante de shifting realmente deseja.

Essa prática se popularizou especialmente no Brasil, onde mais de 500 mil vídeos com a hashtag #shifting foram compartilhados no TikTok até 2025. Nas comunidades online, principalmente no Discord e TikTok, usuários (em sua maioria adolescentes) compartilham experiências, roteiros e métodos para "mudar de realidade". Apesar de muitos relatarem benefícios durante o período de isolamento da pandemia, especialistas em saúde mental alertam sobre possíveis riscos, como isolamento social e dificuldade em distinguir fantasia e realidade.
"A beleza hoje é inofensiva, carece de negatividade. O belo se tornou agradável." — Byung-Chul Han, A Salvação do Belo.
E quando cartunizar vira um ato cultural? Uma maneira de se proteger, se expressar e habitar outra realidade emocional? Parece algo simples criar um avatar de si mesmo, não? Nessa era da "gentle internet", onde tudo parece tão "soft" e inofensivo, criar uma versão de si pelos traços do Studio Ghibli parece apenas uma brincadeira online inocente. Mas é aqui que precisamos trazer a lupa da Realidade Ilusória para observar esse comportamento com mais profundidade.
O lançamento da ferramenta de geração de imagens no estilo Studio Ghibli impulsionou o ChatGPT a números recordes: 150 milhões de usuários ativos semanais em 2025, com 1 milhão de novos cadastros em apenas uma hora. O volume foi tão alto que sobrecarregou os servidores da OpenAI.
Os brasileiros entraram na onda: de políticos a memes recriados com os traços copiados do Studio Ghibli , dessa vez por inputs que passaram longe das mãos de Hayao Miyazaki, tomaram conta das redes sociais e viraram assunto, sendo assim capturados pelo nosso Radar Trop pela variável c3. Porta-Vozes Locais.
Pesquisadores como Sherry Turkle (MIT) e Jesse Fox (Ohio State University) apontam que criar versões cartunizadas de si mesmo funciona como uma "autopreservação emocional", principalmente em contextos de exposição digital, crítica social ou exaustão com a imagem real (um prato cheio para nossos políticos, não é?). Não foi por acaso que tantos deles entraram na onda de criar uma versão de si mesmo - veja mais aqui).
Em seu livro "A Salvação do Belo", Byung-Chul Han traz à luz a busca de uma estética contemporânea suave, lisa e infantilizada, dizendo que isso não é apenas uma questão de gosto, mas um mecanismo cultural de escape diante da brutalidade da nossa realidade. O sociólogo critica a estética do "liso" como parte de um capitalismo tardio, mas também reconhece que ele oferece alívio, funcionando como um analgésico para a alma moderna.
E quando o escape redesenha a realidade?
Como vimos até agora, não existem mais regras para o escapismo do real. Já não precisamos esperar as férias chegarem para planejar uma viagem ou algum evento maior. Dos grandes planos às atividades imersivas, buscamos momentos que nos ajudem a "chegar ao final do dia". Da navegação em mídias sociais à meditação e ao "daydreaming" (sonhar acordado), a Realidade Ilusória virou febre no Brasil com os livros de colorir do Bobbie Goods.
A marca Bobbie Goods, criada pela ilustradora Abbie Goveia, viralizou no TikTok com seus livros de colorir, atraindo principalmente a Geração Z. Com desenhos de animais em situações cotidianas e uma estética fofa e vintage, os livros atraem fãs de cultura "cozy" e "cottagecore".
Com 23,86 milhões de curtidas em vídeos, a marca já vendeu 400 mil livros pela HarperCollins Brasil desde março de 2025. Na Shopee, as buscas pelo produto cresceram 260%, impulsionando também as vendas de canetas marcadoras em 150% - Times Brasil - Com tantas menções, hashtags e volume de conteúdo criados, tanto a marca quanto o ritual que ela criou cortam o Radar Trop pela variável c4. Conversa Popular.
E essa economia em movimento não vende somente lápis e papel, não. Estamos diante de uma busca do consumidor por uma realidade alternativa e acolhedora. Em tempos onde a vida adulta às vezes se mostra tão cruel, milhares de brasileiros vão buscar um refúgio no lúdico. O consumidor grita: "Me dá uma realidade mais gentil!"
E então encontra na estética bonitinha de ursinhos um universo onde nada exige demais, não existem frustrações ou julgamentos, fica então a suavidade das cores e formas.
E o mercado entendeu o sinal: o Burger King e a Faber-Castell tiveram a brilhante e colorida idéia de transformar esse desejo de fuga da realidade em ação de marca, criando uma experiência imersiva onde os consumidores podem adquirir o último lançamento da coleção "Bobbie Goods Dias Frios", além de participar de oficinas de colorir com técnicas e dicas especiais e até mesmo colorir as paredes da loja da Av. Paulista.
No último minuto dessa edição, trazemos mais dois exemplos que fizeram nosso radar "bugar" com seu surrealismo e então não podíamos deixar de fora.
Aproveitando o gancho da tangente c4. Conversa Popular, tem mais um sinal forte com o "Italian Brain Rot", fenômeno que conquistou o mundo e caiu no gosto dos Gen Alphas brasileiros. São doses diárias de "delírios" que transportam para uma realidade onde personagens bizarros gerados por IA falam italiano sem nexo, sem contexto ou significado algum. O "Italian Brain Rot", que já gerou variações como "Ballerina Cappuccina" e "Tralalero Tralala", oferece um alívio leve já que rima, um momento de escape que reduz o sofrimento psíquico, ainda que não faça nenhum sentido. Por alguns instantes, permite que esqueçamos as dificuldades do mundo real — um mecanismo de enfrentamento bem-humorado que revela nossa crescente dependência dessa Realidade tão Ilusória.
A Ballerina Cappuccina pode até falar italiano, mas ainda dentro da variável c4. de Conversas Populares, não podíamos deixar de falar de uma criação de IA que é puro suco de Brasil: a Marisa Maiô, uma apresentadora de um programa fictício feito pelo ilustrador e ator carioca, Raony Phillips no Veo3 do Google, que diz tudo aquilo que gostaríamos de dizer, sem papas na língua, afinal em uma realidade irreal ela pode ser quem quiser.
Mas e se ela fosse real? Já parou para pensar que essa realidade que a Marisa Maiô está trazendo está ganhando um lugar funcional em nossas vidas? Criamos em nossa psique a esperança de que ela fosse tão real quanto nós. Isso prova que o "brainrot", que inicialmente trazia apenas um conteúdo sem sentido, está se tornando um gênero próprio. Personagens de IA, como a Marisa ou a Ballerina Cappuccina, que deveriam ser simples avatares, agora ganham "publis" e voz na mídia. Uma normalização do bizarro que criou um novo ponto de conforto, onde os limites entre real e simulado se tornam cada vez mais difusos.
Em nosso social listening aqui no Trop Drops, observamos que a aceitação da Marisa Maiô é geral, fazendo com que ela se tornasse uma ferramenta de ilusão coletiva.
Criou-se, assim, uma bolha de consenso onde o ilógico e o absurdo são validados pela massa — reforçando nossa necessidade de uma falsa segurança, já que o mundo lá fora está cheio de parquinho pegando fogo.
Para concluir esta edição:
Como as marcas podem usar a tendência e transformar a Realidade Ilusória em realidade verdadeira?
É preciso entender que o absurdo, que antes se continha ao campo do entretenimento, é agora posicionamento de marca. O estranho, o exagero e o lúdico se tornaram código aspiracional.
Normalize o ilusional: transporte, liberte e inspire. O que já foi considerado absurdo, lúdico ou que pertencia somente à imaginação agora ganha espaço para criar experiências físicas, digitais e emocionais. A sensação de liberdade pode ser o ponto de inspiração que a marca deve provocar no consumidor. Não existe certo ou errado: crie uma conexão em que sua marca auxilie sua audiência a quebrar a rotina de forma criativa.
Se o consumidor está à procura de outras realidades, pense como sua marca pode ser a próxima realidade em que ele quer viver. Seja uma embalagem com narrativa escapista, um ritual sensorial no ponto de venda ou uma oficina de co-criação onde o exagero é bem-vindo e o ilusional é uma linguagem legítima.
⇒ A Gentle Monster criou uma ótica que mais parece uma galeria interdimensional;
⇒ O Brasil abraçou bonecas como filhos e pinta outras realidades como as da Bobbie Goods;
⇒ As plataformas como TikTok e Discord viraram portais de shifting para vidas alternativas.
A economia de escape que gera momentos de quebra dessa nossa realidade pragmática já movimenta US$9,7 trilhões e cresce. The Truth About Escapism - McCann WorldGroup
Não se trata apenas de fuga da realidade, mas de criar mundos onde o consumidor quer se ver.
Onde ele pode experimentar uma versão de si que rompe com a lógica produtivista, com a estética do cansaço e os códigos normativos que nós mesmos criamos.
💡 Esta edição do Trop Drops foi produzida com a colaboração de I.A. na correção gramatical, pontuação e revisão de texto. Todas as ideias, pesquisas e design vêm da colaboração de um time real.
TROP - sinais de um futuro tropical, latino e circular